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quinta-feira, 19 de abril de 2012

A última face de Cristo

Técnica de reconstituição facial põe em xeque imagem clássica do rosto de Jesus
 

José Eduardo Barella
 
BBC
Resultado da simulação, com base no crânio de um judeu do século I: Cristo mais moreno
Rosto fino, nariz alongado, olhos castanhos (às vezes verdes ou azuis), pele clara, barba fina, cabelos lisos, longos e levemente ondulados. Com pequenas variações, é assim que o rosto de Jesus Cristo tem sido retratado ao longo dos séculos. Essa imagem tradicional, que transmite pureza e serenidade, tornou o rosto de Cristo um dos mais facilmente reconhecíveis do planeta. Na realidade, é impossível afirmar qual era sua aparência. Os Evangelhos não fazem nenhuma referência ao aspecto pessoal do filho de Maria. 

Em 2001, surgiu um bom palpite sobre como seria o rosto de Jesus. Trata-se de uma reconstrução, com ajuda de computador, a partir do crânio de um judeu do século I. O resultado, um Cristo com uma aparência levantina, causou surpresa, embora o senso comum apóie a nova imagem: pela última versão, o filho de Deus teria um rosto mais arredondado, com o nariz grosso, a barba mais espessa e, constatação óbvia, não poderia ter a pele alva de um nórdico. Afinal, nasceu e viveu sob o sol escaldante do Oriente Médio.

A mais nova face de Cristo pouco lembra a que ocupa o imaginário dos 2 bilhões de cristãos. Apesar do resultado, o trabalho de reconstrução, patrocinado pela rede inglesa de TV BBC para uma série religiosa orçada em 2,5 milhões de dólares, foi bem executado e é tecnicamente irrepreensível. O crânio selecionado por arqueólogos israelenses num antigo cemitério, perto de Jerusalém, como o mais representativo do biótipo dos judeus da época de Cristo foi enviado para a Universidade de Manchester, na Inglaterra. A partir daí, a técnica empregada foi a mesma utilizada em 1999 para reconstituir o rosto de Luzia, o fóssil mais antigo das Américas, de 11.500 anos, encontrado em Minas Gerais.

O crânio foi submetido a uma tomografia pelo professor Richard Neave, especialista em reconstituição facial que já havia trabalhado na reconstrução do rosto de Luzia. Com um computador, Neave obteve imagens tridimensionais que serviram de base para fazer um novo crânio com material sintético. Com esse molde, a face do contemporâneo de Cristo começou a ser delineada. Camadas de argila foram usadas para formar os traços do rosto, como nariz, queixo e bochechas. 

Pelo tipo de crânio e distância entre os olhos é possível calcular a espessura das sobrancelhas, tamanho e tipo do nariz. Outros detalhes, como a cor da pele e dos olhos e o comprimento dos cabelos, são imprecisos. Os modelos foram escolhidos com base em afrescos de sinagogas do Iraque que retratam a vida dos judeus na época de Cristo. "O resultado de Luzia foi mais surpreendente", afirmou a VEJA o professor Neave, que tem em seu currículo mais de 100 reconstruções faciais. "Na de Luzia, não tínhamos noção de como seria um rosto de 11.500 anos. O crânio israelense, que levou uma semana de trabalho, era previsível."

A Igreja Católica simplesmente ignorou o trabalho de Neave. Afinal, o crânio utilizado poderia ser de qualquer judeu da época, inclusive Judas. "A imagem de Cristo não é dogmática, mas de uso estratégico", diz Afonso Soares, professor de teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. "Na África é comum encontrar imagens nas quais Cristo aparece como se fosse negro. A Santa Sé nunca se incomodou com essa interpretação livre." A imagem tradicional de Cristo, fixada principalmente pelos pintores renascentistas, não surgiu por decreto do Vaticano, e sim com base em relíquias. A mais conhecida é o Santo Sudário, o manto que teria servido de mortalha para o corpo de Cristo, cujas fisionomia e silhueta ali teriam ficado impressas. Vários detalhes do aspecto físico de Cristo, como altura (ele teria medido 1,83 metro), são baseados no manto, descoberto em 1354 na França e cuja autenticidade ainda não foi definitivamente comprovada.

Nos primeiros séculos do cristianismo, Cristo era representado por metáforas retiradas do Evangelho, como um pastor ou um cordeiro. À medida que as perseguições religiosas diminuíram, os simbolismos abriram espaço para imagens condizentes com o crescimento da Igreja Católica. 

No século IV, quando o cristianismo foi adotado como a religião do Império Romano, Cristo passou a ser retratado como um homem forte e invencível. Na época das Cruzadas, na Idade Média, a pele clara de Cristo nos quadros retratava as conquistas cristãs, pois os não-brancos eram vistos como pagãos. Com a posição de liderança da Igreja Católica consolidada, deu-se maior ênfase à imagem de humildade e sofrimento. Havia igualmente a preocupação de ressaltar sua dupla natureza, divina e humana, o que deu asas à imaginação dos artistas. A arte renascentista, com Leonardo da Vinci, Rafael, Ticiano e Michelangelo, foi a que deu contornos à imagem de Cristo que persiste até hoje, 500 anos depois. E não serão simulações em computador que a vão revogar.
 
No Sudário, a fonte de inspiração
A imagem tradicional de Cristo baseia-se, em parte, na fisionomia impressa no Santo Sudário. Em 1994, uma simulação em computador comprovou a semelhança com o rosto retratado pelos pintores
Reprodução
 
Jesus segundo os pintores
RAFAEL– Influenciado por Leonardo da Vinci, representava a grandeza heróica de Cristo DA VINCI – Mestre do Renascimento, pintou Cristo de maneira suave e com traços angelicais MICHELANGELO – Pintor e escultor, retratou Cristo de maneira épica e com formas atléticas
Gamma
Gamma
Gamma
LOTTO – Veneziano do século XVI, representou Cristo de maneira enigmática VELÁZQUEZ – O Cristo do mestre espanhol do século XVII era triste e amarrado à cruz TICIANO – O maior dos artistas venezianos retratou Cristo com um realismo assustador
 

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