Técnica
de reconstituição facial
põe em xeque imagem clássica
do rosto de Jesus
José Eduardo Barella
BBC |
Resultado da simulação, com base no crânio de um judeu do século I: Cristo mais moreno |
Rosto
fino, nariz alongado, olhos castanhos (às vezes verdes
ou azuis), pele clara, barba fina, cabelos lisos, longos e
levemente ondulados. Com pequenas variações,
é assim que o rosto de Jesus Cristo tem sido retratado
ao longo dos séculos. Essa imagem tradicional, que
transmite pureza e serenidade, tornou o rosto de Cristo um
dos mais facilmente reconhecíveis do planeta. Na realidade,
é impossível afirmar qual era sua aparência.
Os Evangelhos não fazem nenhuma referência ao
aspecto pessoal do filho de Maria.
Em 2001, surgiu
um bom palpite sobre como seria o rosto de Jesus. Trata-se
de uma reconstrução, com ajuda de computador,
a partir do crânio de um judeu do século I. O
resultado, um Cristo com uma aparência levantina, causou
surpresa, embora o senso comum apóie a nova imagem:
pela última versão, o filho de Deus teria um
rosto mais arredondado, com o nariz grosso, a barba mais espessa
e, constatação óbvia, não poderia
ter a pele alva de um nórdico. Afinal, nasceu e viveu
sob o sol escaldante do Oriente Médio.
A mais nova face de Cristo pouco lembra a que ocupa o imaginário
dos 2 bilhões de cristãos. Apesar do resultado,
o trabalho de reconstrução, patrocinado pela
rede inglesa de TV BBC para uma série religiosa orçada
em 2,5 milhões de dólares, foi bem executado
e é tecnicamente irrepreensível. O crânio
selecionado por arqueólogos israelenses num antigo
cemitério, perto de Jerusalém, como o mais representativo
do biótipo dos judeus da época de Cristo foi
enviado para a Universidade de Manchester, na Inglaterra.
A partir daí, a técnica empregada foi a mesma
utilizada em 1999 para reconstituir o rosto de Luzia, o fóssil
mais antigo das Américas, de 11.500 anos, encontrado
em Minas Gerais.
O crânio foi submetido a uma tomografia pelo professor
Richard Neave, especialista em reconstituição
facial que já havia trabalhado na reconstrução
do rosto de Luzia. Com um computador, Neave obteve imagens
tridimensionais que serviram de base para fazer um novo crânio
com material sintético. Com esse molde, a face do contemporâneo
de Cristo começou a ser delineada. Camadas de argila
foram usadas para formar os traços do rosto, como nariz,
queixo e bochechas.
Pelo tipo de crânio e distância
entre os olhos é possível calcular a espessura
das sobrancelhas, tamanho e tipo do nariz. Outros detalhes,
como a cor da pele e dos olhos e o comprimento dos cabelos,
são imprecisos. Os modelos foram escolhidos com base
em afrescos de sinagogas do Iraque que retratam a vida dos
judeus na época de Cristo. "O resultado de Luzia foi
mais surpreendente", afirmou a VEJA o professor Neave, que
tem em seu currículo mais de 100 reconstruções
faciais. "Na de Luzia, não tínhamos noção
de como seria um rosto de 11.500 anos. O crânio israelense,
que levou uma semana de trabalho, era previsível."
A Igreja Católica simplesmente ignorou o trabalho de
Neave. Afinal, o crânio utilizado poderia ser de qualquer
judeu da época, inclusive Judas. "A imagem de Cristo
não é dogmática, mas de uso estratégico",
diz Afonso Soares, professor de teologia da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. "Na África
é comum encontrar imagens nas quais Cristo aparece
como se fosse negro. A Santa Sé nunca se incomodou
com essa interpretação livre." A imagem tradicional
de Cristo, fixada principalmente pelos pintores renascentistas,
não surgiu por decreto do Vaticano, e sim com base
em relíquias. A mais conhecida é o Santo Sudário,
o manto que teria servido de mortalha para o corpo de Cristo,
cujas fisionomia e silhueta ali teriam ficado impressas. Vários
detalhes do aspecto físico de Cristo, como altura (ele
teria medido 1,83 metro), são baseados no manto, descoberto
em 1354 na França e cuja autenticidade ainda não
foi definitivamente comprovada.
Nos primeiros séculos do cristianismo, Cristo era representado
por metáforas retiradas do Evangelho, como um pastor
ou um cordeiro. À medida que as perseguições
religiosas diminuíram, os simbolismos abriram espaço
para imagens condizentes com o crescimento da Igreja Católica.
No século IV, quando o cristianismo foi adotado como
a religião do Império Romano, Cristo passou
a ser retratado como um homem forte e invencível. Na
época das Cruzadas, na Idade Média, a pele clara
de Cristo nos quadros retratava as conquistas cristãs,
pois os não-brancos eram vistos como pagãos.
Com a posição de liderança da Igreja
Católica consolidada, deu-se maior ênfase à
imagem de humildade e sofrimento. Havia igualmente a preocupação
de ressaltar sua dupla natureza, divina e humana, o que deu
asas à imaginação dos artistas. A arte
renascentista, com Leonardo da Vinci, Rafael, Ticiano e Michelangelo,
foi a que deu contornos à imagem de Cristo que persiste
até hoje, 500 anos depois. E não serão
simulações em computador que a vão revogar.
No
Sudário, a fonte de inspiração A imagem tradicional de Cristo baseia-se, em parte, na fisionomia impressa no Santo Sudário. Em 1994, uma simulação em computador comprovou a semelhança com o rosto retratado pelos pintores |
Reprodução
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Jesus
segundo os pintores
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