Muita gente só se deu conta da novidade quando, a certa altura da cerimônia de encerramento dos Jogos de Londres, domingo, foi anunciada a realização dos Jogos Paralímpicos de 2016 no Rio de Janeiro.
Espera aí: “paralímpicos”?! Os jogos não deveriam ser “paraolímpicos”, como sempre foram?
Não se tratava de erro de digitação. Em novembro do ano passado, quando foi divulgada a logomarca do evento, o Comitê Paraolímpico Brasileiro (CPB), assim chamado desde sua fundação, em 1995, aproveitou para anunciar que estava trocando de nome “para se alinhar mundialmente aos demais países”. Para tanto, deixava um o pelo caminho, tornando-se oficialmente o Comitê Paralímpico Brasileiro. Na mesma data, estipulava um prazo de 18 meses – que vence em maio do ano que vem – para que as entidades a ele filiadas se atualizem ortograficamente.
Na prática, isso significa que a palavra “paraolímpico” tem seus dias contados. Normalmente não é tão grande o poder de entidades reguladoras sobre a língua que as pessoas de fato falam. Neste caso, porém, trata-se de um campo ainda em processo de organização e que depende pesadamente da esfera oficial. Isso me leva a prever que a velha grafia “paraolímpico” não terá a menor chance, embora a forma “paralímpico” ainda nem apareça em nossos dicionários ou no Vocabulário Ortográfico da Academia Brasileira de Letras.
Estamos diante de uma vitória da globalização sobre o espírito de nossa língua. Isso é bom? Ruim? Tanto faz? Depende do aspecto que se decida enfatizar. Antes que a nova grafia se torne tão natural que a história da palavra vire uma curiosidade de museu, convém recapitular sumariamente sua trajetória.
A palavra paraolímpico foi formada a partir da junção do prefixo de origem grega para (de paraplegia) com o adjetivo olímpico. Se hoje não interessa ao movimento paraolímpico enfatizar a relação com a paraplegia que está na origem do termo, mesmo porque abarca muitos outros tipos de deficiência, cabe à etimologia registrar isso.
Desde 1960, quando 400 atletas disputaram em Roma os primeiros – e oficiosos – Jogos Paraolímpicos, o campo paradesportivo caminhou do amadorismo abnegado para o profissionalismo. Compreensivelmente, hoje o site do Comitê Paralímpico Internacional – fundado em 1989, um ano após os Jogos Olímpicos de Seul empregarem oficialmente a palavra pela primeira vez – prefere explorar a riqueza semântica de ‘para’, que segundo o Houaiss pode indicar, além de defeito, proximidade e semelhança:
A palavra ‘paralímpico’ deriva da preposição grega ‘para’ (ao lado) e da palavra olímpico. Significa que os Jogos Paralímpicos se realizam paralelamente aos Olímpicos e ilustra o modo como os dois movimentos existem lado a lado.
O comitê internacional é “paralímpico” desde sempre. O português, fundado em setembro de 2008, também já nasceu com essa grafia, contrariando o parecer encomendado na época pelo Instituto do Desporto à linguista Margarita Correia.
Mas a pergunta é: Pode alguém decidir pela mudança de um termo apenas para se alinhar à pronúncia internacional, sem respeitar os princípios que regem o nosso idioma? E qual a grafia correta agora? Como fica a situação então? o que diz a língua culta? Escrevo e falo Paralímpico ou Paraolímpico?
Segue, como uma provocação à discussão, o parecer da linguista portuguesa, solicitado, mas ignorado pelo Instituto Português do Desporto e da Juventude em 2008:
Parecer da linguista Margarita Correia, solicitado pelo Instituto Português do Desporto e da Juventude sobre a grafia de paraolímpico — e não para-olímpico nem, muito menos, “paralímpicos”. Os argumentos apresentados nesta transcrição, foram publicados pela autora em acordo com a Associação de Informação Terminológica, sob o título original “Paralímpico vs. para-olímpico vs. Paraolímpico”.
1. Paralímpico/para-olímpico/paraolímpico pode corresponder em português seja a um adjectivo, tal como em «Comité Paraolímpico Português», seja a um nome, usado, nesse caso, no plural, tal como «os Paraolímpicos» em vez de «os Jogos Paraolímpicos».
2. Em português, o termo em questão resulta de um empréstimo do termo inglês paralympics (nome), do qual se terá construído também nessa língua um adjectivo, paralympic. De acordo com o Oxford English Dictionary, paralympics constitui uma amálgama, tendo sido construído com base no cruzamento de para(plegic) + (o)lympics. O termo tem, portanto, na sua origem a forma paralympics.
3. Ao serem integradas em português (e noutras línguas), as palavras provenientes de outras línguas sofrem sempre adaptações, que podem ser conscientes ou inconscientes, e que podem consistir na simples alteração fonética da palavra, ou na sua adaptação morfológica, entre outras. Especialmente quando as palavras importadas de outras línguas constituem termos científicos e/ou técnicos, esses termos deveriam ser sempre alvo de intervenção consciente de alguma(s) entidade(s), de modo a não introduzir na língua termos que sejam violadores da sua estrutura (nomeadamente, morfológica) e que, por isso mesmo, sejam opacos para os seus utilizadores. A busca da transparência deve, portanto, nortear todos aqueles que intervêm na integração consciente de empréstimos e na neologia planificada.
4. Apesar de o processo de amalgamação não ser um processo muito produtivo ao longo da história da língua portuguesa, a verdade é que, nos últimos anos, tem surgido nesta língua um número crescente de amálgamas, mesmo em terminologias científicas e técnicas, resultantes, sobretudo, da importação de outras línguas, de termos construídos por este processo mas também de construção autóctone. Embora não existam muitos estudos sobre este processo de construção de palavras para a língua portuguesa, é possível, no entanto, detectar algumas tendências: a amálgama pode ser construída não apenas com sílabas iniciais da primeira palavra e sílabas finais da segunda [ex.: infor(mação) + (auto)mática], mas também com sílabas iniciais da primeira palavra que se juntam à segunda palavra, que mantém a sua integridade [ex.: tele(fone) + móvel ouinfo(rmação) + alfabetização]. Será mais consentâneo com a estrutura da língua portuguesa, portanto, que o termo em causa mantenha a vogal inicial o da palavra olímpico.
5. Apesar de se ter verificado que a forma paralímpico tem uma frequência de uso mais elevada do que o termoparaolímpico (numa consulta a páginas portuguesas de Internet por meio do motor de pesquisa Google, realizada em 19 de Janeiro de 2005, a forma paralímpico surgiu 6050 vezes contra 246 da forma paraolímpico), a verdade é que paraolímpicose encontra já consagrado pela legislação portuguesa, no acto de nomear oficialmente o Comité Paraolímpico Português, facto que não pode deixar de ser tomado em consideração.
6. Dado o que foi dito em 3., do ponto de vista linguístico, a forma paralímpico é violadora da estrutura do português, não sendo transparente, pelo que se preconiza a sua substituição por uma forma em que a palavra olímpico mantenha a sua integridade. Além disso, no ponto 4., demonstrou-se que a forma paralímpico é também violadora daquilo que já se encontra consagrado na Lei Portuguesa.
Por tudo isto, desaconselha-se vivamente o uso da forma paralímpico em documentação oficial e em discurso formal escrito de grande visibilidade.
Para-olímpico ou paraolímpico:
7. Para defender o emprego do hífen na forma paraolímpico, poderá argumentar que, tendo em conta o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, se preconiza o uso do hífen «nas palavras compostas por justaposição que não contêm formas de ligação e cujos elementos, de natureza nominal, adjetival, numeral ou verbal, constituem uma unidade sintagmática e semântica e mantêm acento próprio, podendo dar-se o caso de o primeiro elemento estar reduzido» (Base XV). Terá sido essa a razão que levou o lexicógrafo a grafar para-olímpico no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (vulgo, Dicionário da Academia).
8. Dois argumentos, no entanto, podem ser aduzidos contra esta posição:
a) em primeiro lugar, nos casos apresentados nessa Base XV, todos os pretensos exemplos de formas reduzidas da primeira palavra são elementos acentuados graficamente (és-sueste) ou elementos que terminam em vogal de ligação o (aberto), a saber, afro-asiático, afro-luso-brasileiro, luso-brasileiro e primo-infeção; ora, tendo em atenção que o elementopara-, resultante da truncação de paraplégico, apresenta acento secundário em relação a olímpico, além de que não apresenta qualquer vogal de ligação, o (aberto) ou i, poder-se-á argumentar que este elemento não é da mesma natureza daqueles que figuram como exemplos na Base XV do Acordo e que, por isso, a obrigatoriedade do uso do hífen no termo em apreço não é clara;
b) em segundo lugar, ainda seguindo o texto do Acordo, o elemento para- pode também ser classificado como um «elemento não autónomo ou falso prefixo, de origem grega e latina» (Base XVI), não sendo necessário, neste caso, o emprego do hífen em paraolímpico.
9. Dado o facto de o termo paraolímpico vir a ter grande notoriedade e fazer parte de diferentes denominações de organismos oficiais com grande visibilidade, é legítimo que, dada a alternativa, se defenda o emprego de uma forma que, sendo gramatical e transparente (como ficou demonstrado na primeira parte deste parecer), seja mais curta e de aspecto gráfico mais simples, pelo que se justifica a grafia do termo sem hífen. Se aos argumentos apresentados em 8., acrescentarmos, então, os factores sociolinguístico e pragmático, verificamos que a forma paraolímpico é preferível à forma equivalente com hífen.
Por tudo o que se apresentou, a AiT recomenda que a forma desejável para grafar o termo em análise é, sem margem para dúvidas, a forma paraolímpico.
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