Embora eu faça ressalvas a algumas afirmações e às ambiguidade perceptíveis em alguns trechos do documento, considero um importante avanço que a Convenção Batista Baiana, finalmente tenha se pronunciado sobre temas contemporâneos que afetam diretamente à nossa sociedade, alguns dos quais ameaçando a ordem democrática e social estabelecida, e demonstrando que não endossamos jamais às posturas reacionárias de alguns que se intitulam representantes dos evangélicos no trato de tais assuntos diante da mídia, de seus seguidores e dos demais cidadãos. Segue, abaixo, o documento denominado CARTA DE IPIAÚ, suprimindo-se apenas as referências bibliográficas e os nomes dos que as subscrevem no texto original por questões de formatação e por se tratar de documento aprovado em plenário, por isso, e desde então, um texto oficial da Convenção Batista Baiana.
" CARTA DE IPIAÚ
As Igrejas Batistas da Bahia, reunidas em sua 92ª Assembleia da Convenção Batista Baiana, na cidade de Ipiaú, nos dias, 30/06 a 04/07, fazem uma declaração pública em resposta ao cenário de intolerância vivido em nosso país.
SOBRE O CENÁRIO CONTEMPORÂNEO
O Brasil está vivenciando um período crítico extremamente preocupante: crise econômica e política, falta de um projeto político nacional, falta de estadistas, lideranças políticas medianas, falta do senso de bem comum e a prevalência dos interesses pessoais e privados sobre o interesse comum.
Há tensões de toda ordem: gênero, gerações, étnicas, regionais e religiosas que tem produzido toda forma de violência, inclusive homicídios. Há violências, conflitos sociais, étnicos, abusos de drogas. O medo parece comum e a resposta violenta que imponha mais medo parece a resposta mais óbvia e a única solução. Exemplo mais visível dessa cultura de imposição de uma força mais bruta e de mais violência é a proposição da redução da maioridade penal no Congresso Nacional.
Lideranças, inclusive religiosas, incitam a agressão, o fundamentalismo, o fanatismo, o ódio, a demonização do outro. As religiões muitas vezes são utilizadas para obtenção de poder econômico ou político, desviando-se completamente do seu propósito original.
Vivemos, no Brasil, numa jovem democracia. A redemocratização política tem menos de 30 anos. Ainda há necessidade de políticas públicas de gênero e etnia num claro reconhecimento de que há ainda desigualdades entre pessoas de gênero e etnias diferentes, ou seja, ainda não vivemos uma democracia plena, madura.
Num Estado democrático religião é assunto do indivíduo e seu Deus e não do Estado. A jovem democracia brasileira só passa a experimentar essa realidade a partir da década de 50 do século XX e só chega às religiões mais excluídas na metade da década de 70, quando deixa-se de exigir das religiões de matriz africana a obrigatoriedade de licença junto às autoridades policiais para realização dos seus cultos. Portanto, também no campo da tolerância religiosa ainda somos aprendizes e por certo temos grandes desafios, mas temos que ter a firme convicção de que não queremos retroceder ao tempo da religião oficial onde os desafetos eram apedrejados e aprisionados.
Todavia, apesar do avanço democrático, há claramente um retrocesso que se revela preocupante. Há um ressurgimento de preconceitos que julgávamos mortos e sepultados. A famosa “cordialidade brasileira” parece dar lugar a um espírito beligerante. Há guerras e intolerância num nível que julgávamos superados.
É bom lembrar que por trás de toda intolerância há sempre disputa de poder. A intolerância é ainda uma das formas de opressão contra os mais fragilizados por sua condição econômica, religiosa, étnica e sexual. A intolerância via de regra, produz um imperialismo social onde o diferente não é tolerado estabelecendo-se uma ditadura.
Diante desse cenário, agravado pela fala de supostos representantes do segmento evangélico, nós os batistas baianos decidimos manifestar publicamente e oficialmente sobre este tema.
CONSIDERANDOS
Os princípios batistas consideram que “cada indivíduo foi criado à imagem de Deus e, portanto, merece respeito e consideração como uma pessoa de valor e dignidade infinita”; que “cada pessoa é competente e responsável perante Deus nas suas próprias decisões e questões morais e religiosas”; que “cada pessoa é livre perante Deus em todas as questões de consciência e tem o direito de abraçar ou rejeitar a religião, bem como testemunhar sua fé religiosa, respeitando os direitos dos outros”.
Diante disso é correto afirmar que cremos que o indivíduo pode se relacionar com Deus sem a imposição de credos, interferência de mediadores ou intervenção do governo civil.
Tendo sido, nós, batistas, vítimas da intolerância e perseguição religiosas ao longo da nossa história de 400 anos, desenvolvemos uma paixão pelo tema da liberdade religiosa. Já em 1612 foi escrito por Thomás Hellwys o primeiro apelo em língua inglesa em favor da completa liberdade religiosa. Neste documento ele reafirma sua lealdade ao Estado, mas declara o que acredita ser a delimitação do poder do Estado e o princípio da liberdade religiosa para todos os indivíduos: “quer sejam eles heréticos, turcos, judeus ou o que quer que sejam, não compete a qualquer poder terreno puni-los...”.
Os Batistas fundamentaram sua crença na liberdade religiosa em verdades extraídas da própria Bíblia Sagrada. O Deus soberano criou seres livres. Impedir o uso da liberdade de seres criados à imagem e semelhança de Deus é aviltar a criação de Deus e intentar contra a sua mais sagrada criação. Impor uma religião ou impedir o exercício da fé de alguém é impedir o exercício de uma fé autêntica, visto que esta só é fé se for livre.
Aquele que é o nosso Senhor é Mestre conviveu num mundo semelhante ao atual, permeado por cosmovisões diferentes da sua, tais como gregos, cananeus, discípulos de João e até pseudodiscipulos seus e em diversas ocasiões, mesmo incitado a exterminá-los ou impedir de exercerem a sua fé, recusou-se a fazê-lo: “não sabeis de que espírito sois?” E “não os impeçais”.
Os batistas ensinam que a salvação é pessoal, a fé individual e relacional, não ritual e que a conversão se dá mediante convicção dos próprios pecados, arrependimento e confiança na graça salvadora de Deus, na pessoa bendita de Jesus. Portanto não convém ao Estado, nem mesmo a qualquer religião impor a sua verdade como única.
DECLARAÇÕES
O ser humano deve ser considerado o valor mais elevado da vida (Salmo 8) e disto decorrem quatro declarações:
SOMOS VEEMENTEMENTE CONTRÁRIOS À CULTURA DA VIOLÊNCIA E ADEPTOS DO RESPEITO À VIDA E A CULTURA DA PAZ
Toda forma de violência cometida ou ensejada, mesmo e principalmente, em nome de Deus não apenas é repudiada, mas negada como procedente de Deus que é o autor da vida, reconciliador, que para pacificar a relação com o ser humano foi capaz de realizar o sacrifício supremo de entregar o seu próprio Filho (João 3:16). Dentre as formas de violência descritas genericamente acima podem ser incluídas: ódio, egoísmos, inveja, rancor, discriminações, opressão, indiferença e desrespeito à liberdade do outro.
SOMOS DEFENSORES DA SOLIDARIEDADE E COOPERAÇÃO ENTRE AS PESSOAS
Denunciamos como antidivinas a cultura do egoísmo e toda ordem econômica que destrói os recursos naturais e explora o indivíduo, que alimenta a corrosão social e aumenta o fosso que separa os ricos, cada vez mais ricos, dos pobres, cada vez mais pobres (Isaias 58). Valorizar a pessoa humana como idealizada por Deus implica em construir uma sociedade mais justa e fraterna com uso racional dos recursos naturais, onde os que governam o façam para todos, onde instituições sirvam as pessoas, onde os direitos prevaleçam independentemente do poder econômico dos envolvidos e onde a resistência seja sempre pacífica. Para isso defendemos em nosso país as grandes reformas estruturais iniciando com uma ampla reforma política, que independentemente do modelo se paute pelos valores acima descritos.
SOMOS FAVORÁVEIS À CULTURA DE PARCERIA E DIREITOS IGUAIS ENTRE OS SERES HUMANOS INDEPENDENTEMENTE DO GÊNERO
Criados à imagem de Deus, homem e mulher são iguais em valor e dignidade. Todavia temos experimentado milhares de anos de exclusão, opressão e dominação injustificáveis e condenáveis de um sexo sobre o outro. Defendemos que a espiritualidade bíblica conduz a uma relação de respeito mútuo, de tolerância, de reconciliação e de amor entre os gêneros.
SOMOS DEFENSORES DA CULTURA DO DIÁLOGO, DA TOLERÂNCIA E DO RESPEITO A DIVERSIDADE
Estamos comprometidos historicamente com a plena liberdade, não apenas a mera tolerância. Queremos e lutamos pela liberdade de todos os indivíduos ou instituições/religiões, mesmo para aqueles com os quais temos posicionamentos diametralmente opostos. Como disse o pensador: “posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-las”. O diálogo é a via humana desejável para o entendimento, mesmo entre opositores ferrenhos. Dialogar é fundamental para evitar ou resolver conflitos que ameacem a vida em qualquer das suas dimensões e onde a solução não seja possível com a decisão de apenas uma das partes. “Se não conversarmos uns com os outros agora, iremos atirar uns nos outros amanhã”.
O diálogo não produzirá um pensamento uniforme, nem uma religião única, mas possibilitará a coexistência, a convivência e por fim a “diversidade reconciliada” e a diferença suportada.
Salvador, BA, 4 de julho de 2015."
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